O conceito de atendimento humanizado é ainda recente na medicina veterinária. Mas se pararmos para analisar o conceito básico de humanização, de forma literal e simples, é “tornar humano” e fica a pergunta: de que forma tornar humano o universo da saúde veterinária? Podemos fazer uma analogia com as certificações como Cat Friendly Practice e Fear Free, quando as necessidades da espécie em questão são atendidas.
Para falar mais sobre o assunto conversamos com a médica-veterinária Tatiana Vieira Machado, sócia-fundadora do hospital veterinário Animaniacs (animaniacs.com.br), vice-presidente da Associação Nacional de Médicos-Veterinários (ANMV) e diretora da Associação Brasileira de Hospitais Veterinários (ABHV), que explica sobre a prática do atendimento humanizado em um estabelecimento veterinário.
Revista Vet&Share: Qual o primeiro passo para ter um atendimento humanizado?
Tatiana Vieira Machado: Primeiro é preciso entender o que o cliente deseja e precisa. Hoje o cliente chega na clínica veterinária munido de muito mais informações, bem diferente de alguns anos atrás. Antigamente o que o veterinário falava o cliente acatava e ponto. Hoje o cliente já vem com pesquisas realizadas sobre os sintomas, sobre possíveis diagnósticos, tratamentos e não acredita somente no que o veterinário diz. Por um lado, isso é importante, porque ajuda na adesão no tratamento por parte desse tutor. Quanto mais informação o cliente tem, mais ele adere ao tratamento e, consequentemente, temos mais resultados positivos na evolução do paciente.
Além disso, existe um avanço tecnológico e a medicina veterinária tem se beneficiado desses avanços, seja para o tratamento e diagnóstico dos pacientes. Contudo, o avanço tecnológico pode fazer com que o atendimento humanizado se perca, que não haja acolhimento e personalização. Então precisamos trabalhar para que o avanço tecnológico não seja algo ruim e usar isso a nosso favor.
O atendimento humanizado tem como base identificar o que o cliente quer e precisa. Pode ser que determinado cliente queira um atendimento mais longo para tirar várias dúvidas e contar sobre seu pet. Já o outro cliente, quer um atendimento mais rápido, porque tem algum compromisso e precisar ir embora. Você tem que tratar cada um como se fosse único. Temos que entender a necessidade do cliente e tratar de acordo com a mesma. É preciso ter a sensibilidade. É como a frase do Ruy Barbosa: “Igualdade é tratar desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam”.
V&S: Em que momentos o atendimento deve ser humanizado?
Tatiana: Quando falamos em atendimento humanizado, não se trata apenas da consulta veterinária. Esse atendimento começa desde o agendamento da consulta, do exame, passando pela recepção, pelo pessoal da limpeza, pelo veterinário, auxiliar veterinário, por toda a equipe. A equipe deve ser contratada e treinada visando trabalhar com esse conceito. Além disso, é preciso fazer um treinamento contínuo da equipe para que todos entendam a importância dessa humanização do atendimento.
Contrate comportamentos e treine habilidades. Hoje em dia contratar um médico-veterinário somente pela técnica, não é mais o que a gente procura. Ao contratar é importante, claro, avaliar o nível de conhecimento técnico na medicina veterinária, mas centramos também na pessoa. Gostamos de utilizar uma frase que o Hospital Albert Einstein usa bastante que é “What matters to you” (O que importa para você)*.
Então trabalhamos com foco no que importa aos tutores. Claro que sempre com ênfase no paciente. Hoje não é mais o que importa para o veterinário e para a clínica e, sim, o que importa para o familiar do paciente e para o paciente. Mesmo que o veterinário tenha determinada opinião sobre o que é melhor para o paciente, ele tem o dever de informar todas as opções para o cliente e deixar que ele tome a decisão em parceria com o veterinário. O veterinário tem o dever de explicar todas as opções de tratamento e apoiar a decisão que for melhor para a família do paciente.
V&S: O que mais faz parte do atendimento humanizado além do treinamento da equipe?
Tatiana: Além do treinamento da equipe, é preciso prestar atenção na arquitetura e organização. O atendimento humanizado também está nos pequenos detalhes no ambiente, por exemplo, o som. A clínica veterinária é um ambiente que na maioria das vezes o animal está doente e o tutor está triste e preocupado. Há estudos que dizem que a música clássica acalma e deixa o ambiente muito mais positivo.
Disponibilizar na recepção café, chá, bolo, balas, para passar ao cliente a sensação de “não” estar em um hospital, uma sala de espera mais aconchegante, com mobiliários, com cores, e imagens de pessoas e animais felizes, são outros itens no ambiente que fazem parte dessa humanização. Antigamente, as clínicas veterinárias deixavam expostas muitas fotos de doenças, de cirurgias. Mas hoje trabalha-se muito com hospital muito mais parecido com hotel, para que haja mais acolhimento.
V&S: O que o cliente precisa?
Tatiana: Para um bom atendimento, o cliente precisa de agilidade, qualidade e disponibilidade. E para saber se estamos prestando um bom atendimento usamos várias métricas. No que diz respeito a agilidade, por exemplo, utilizamos uma ferramenta que é o SLA (Service Level Agreement) que vai mensurar a satisfação com o tempo de espera. Hoje temos como meta o SLA de 20 minutos, pois sabemos que o cliente que espera mais que isso ficará insatisfeito e a experiência dele já não será positiva. Além disso, o cliente só fica insatisfeito pela demora quando ele não tem informação. Se esse cliente for informado em tempo real tudo que está acontecendo, ele vai entender.
Quando falamos em disponibilidade, temos como referência os antigos médicos da família, apareciam em novelas, por exemplo, e cuidavam da família toda. É esse tipo de atendimento que o tutor busca hoje. Ele quer que o veterinário esteja disponível quando ele precisar para tirar dúvidas, se ele viajar com o pet e estiver longe, ele quer ter aquele veterinário de confiança da família para tirar dúvidas em casos de emergência.
Antigamente o único quesito que importava era o conhecimento técnico do veterinário, hoje não basta mais só isso. Vemos muitos lugares com alta qualidade técnica, mas que não tem agilidade e não estão disponíveis quando o cliente precisa. Então o cliente vai procurar outro serviço com qualidade técnica, mas também que tenha agilidade e disponibilidade.
É importante a gente pensar em satisfação e experiência do cliente. Há casos em que o cliente foi atendido e o veterinário resolveu o problema dele com um bom tratamento ao paciente. Porém, a recepcionista estava com a cara fechada, a espera foi de mais de uma hora, tinha xixi na recepção, ou seja, a experiência foi negativa. Então apesar do cliente ficar satisfeito com o atendimento ao paciente, a experiência toda foi negativa e dificilmente esse cliente retornará. Por outro lado, mesmo quando o resultado não foi satisfatório para o cliente, seja porque o pet morreu ou o tratamento não deu resultados imediatos, mas a experiência foi positiva, esse cliente retornará e indicará para outras pessoas.
Para mensurar esse atendimento usamos um indicador chamado Net Promoter Score que é uma nota de 0 a 10 para saber se a experiência dele foi positiva naquele lugar e se indicaria para outras pessoas. Então de 1 a 6 são os detratores, que não indicam e não voltam, de 7 a 8 são os neutros, que gostaram, mas não indicam e de 9 a 10 são os promotores que vão indicar para outras pessoas.
Você se torna caro quando não entrega a qualidade que o cliente esperava. Outro ponto que eu sempre abordo com a equipe também é que, quando se tem um hospital com tecnologia de ponta e referência, a expectativa do cliente é muito alta, então se você entregar qualquer coisa abaixo dessa expectativa, a experiência dele já foi negativa. A equipe multidisciplinar desses grandes centros de diagnósticos, especialidades e hospitais precisam ser altamente capacitados para entregar o que o cliente procura, caso contrário não vai fidelizar. E outro ponto importante, é lembrar que os pets hoje fazem parte da família e são o amor de alguém. Como diz a psicóloga Joelma Ruiz, mais do que membros da família, são apoio da família. Os animais hoje salvam as pessoas de depressão, crises de ansiedade e muitos outros transtornos psicológicos. Por isso, imagina se o apoio emocional dessa pessoa ou dessa família fica doente ou corre o risco de morrer. Olha o tamanho da responsabilidade do médico-veterinário e de quem trabalha com vidas e com o amor de alguém. O atendimento ao cliente deveria chamar acolhimento ao cliente, porque é isso que ele mais precisa em um momento que ele pode estar desgastado emocionalmente, financeiramente. O que ele mais quer é ser acolhido e não alguém que traga mais problemas para ele.
V&S: Na sua opinião, os veterinários estão despertando para a importância do atendimento humanizado? E como os veterinários ou os futuros veterinários podem se preparar para oferecer mais acolhimento aos clientes?
Tatiana: Eu vejo que os gestores que já atuam na área começaram a mudar muito a visão e entender que para o negócio prosperar é preciso prestar atenção no que o cliente precisa. E um dos desafios hoje é a geração atual que além de ser muito imediatista, não tem muita paciência. E para trabalhar com humanização na área da saúde tem que ter paciência e resiliência. Além disso, hoje temos mais de 530 cursos de medicina veterinária em universidades no país e falta essa formação pessoal nas grades universitárias. Elas focam muito em técnica e não abordam marketing, gestão e pessoal de atendimento. Sem ter essa base e mesmo sabendo muito na parte técnica, o veterinário não consegue oferecer um bom atendimento, oferecer uma experiência para o cliente.
Por isso como associação, tanto a ANMV quanto a ABHV queremos também fazer a diferença e contribuir com os veterinários compartilhando esse tipo de conhecimento, pois quem se destaca hoje é quem entende o que importa para os clientes.
Satisfação do cliente.
Net Promoter Score: indicador para mensurar a satisfação do cliente
*What matters to you A iniciativa “What matters to you” começou na Noruega, em 2014, e já se espalhou por vários países na área da saúde. No Brasil, a iniciativa chegou em 2017 por meio do Instituto Brasileiro para Excelência em Saúde (IBES) em parceria com o Healthcare Improvement Scotland – whatmatterstoyou.scot/
Um dos principais objetivos da iniciativa é desenvolver mais a intenção de simplesmente escutar, ouvir profundamente e entender. Por que não tendemos a ouvir bem os outros? Talvez estivéssemos muito ocupados ou tenhamos nossas próprias opiniões ou opiniões sobre o mundo que estamos interessados em compartilhar? Ou qualquer outro motivo.
Como dizia o escritor Stephen Covey: “Most people do not listen with the intent to understand; they listen with the intent to reply. – A maioria das pessoas não ouve com a intenção de entender; eles ouvem com a intenção de responder.”
|
Saiba mais Na saúde pública no Brasil, o Ministério da Saúde implementou programas que visam o atendimento humanizado. O primeiro foi em 2000, o Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar (PNHAH), da Secretaria de Assistência à Saúde, do Ministério da Saúde brasileiro, com duração de 2000 até 2002. O programa propunha um conjunto de ações integradas que visavam mudar substancialmente o padrão de assistência ao usuário nos hospitais públicos do Brasil, melhorando a qualidade e a eficácia dos serviços hoje prestados por estas instituições.
Hoje o governo tem implementado a Política Nacional de Humanização (PNH) que existe desde 2003 para efetivar os princípios do SUS no cotidiano das práticas de atenção e gestão, qualificando a saúde pública no Brasil e incentivando trocas solidárias entre gestores, trabalhadores e usuários. A PNH deve se fazer presente e estar inserida em todas as políticas e programas do SUS. Promover a comunicação entre estes três grupos pode provocar uma série de debates em direção a mudanças que proporcionem melhor forma de cuidar e novas formas de organizar o trabalho.
|
Tatiana Vieira Machado, médica-veterinária, sócia-fundadora do hospital veterinário Animaniacs, vice-presidente da ANMV e diretora da ABHV.
Reportagem publica na edição 85 da Revista Vet&Share.
Texto: Mariana Perez Vilela-Jornalista (Mtb: 56.876)